segunda-feira, 3 de maio de 2010

1º de Maio de 2010

Não sei bem por que razão, mas senti alguma obrigação cívica em escrever sobre o 1º de Maio. Decidi, então, escrever sobre a origem histórica do 1º de Maio, ideia que acabei por abandonar. É certo que a história do primeiro de Maio é importante e, certamente, tal texto seria mais adequado a um Blog de História. Contudo, entendi que esse escrito seria interpretando como mais uma comemoração histórica do acontecimento, uma efeméride do 1º de Maio. Confesso que desconfio de comemorações e efemérides, que são, quase sempre, celebrações do poder, e escondem, quase sempre, um “requiem aeternam dona eis”.

Recordei-me, então, do primeiro 1º de Maio que não vivi por me encontrar, desde o fracassado golpe spinolista das Caldas, detido na Base Aérea de Tancos. Por alguns momentos, pensei contar-vos como fiquei impressionado, não com as imagens das grandiosas manifestações, mas, sim, com o brilhozinho nos olhos dos manifestantes. Nesse dia, estranhamente, os portugueses tornaram-se, de repente, educadíssimos, simpatiquíssimos, pediam mil desculpas uns aos outros. Foi, no fundo, o saborear, pela primeira vez ou talvez a última, da vivência da liberdade, mas saboreava-se, também, o gosto da solidariedade, do amor, da fraternidade, que são irmãs gémeas da liberdade. Para não ser interpretado como um saudosista, resolvi abandonar esse escrito, até porque detesto o saudosismo, esse atavismo lusitano que muito mal tem feito a Portugal. Lembrei-me, então, do segundo 1º de Maio, o da discórdia, marcado pelos arrufos entre os partidários da liberdade e da não-liberdade, ou melhor, pelo confronto entre os dois imperialismos. Aquela gente, que vivera tão intensamente a liberdade era, um ano depois, marcada por uma negatividade extrema. O brilhozinho nos olhos desaparecera e dera lugar a um semblante grave, a fraternidade dera lugar ao ódio, a liberdade dera lugar à prisão. Alguém fechava o estádio 1º de Maio para que outros não participassem na festa. Enfim, estavam criadas as condições para uma guerra civil, que se aproximava, dia após dia. Desisti de escrever sobre esse triste acontecimento. Afinal, num dia de festa e de unidade, será que valeria a pena recordar esse triste dia de Maio? Recordei-me, então, do último 1º de Maio, vivido no regime Marcelista, o da manifestação no Rossio, aquele em que a Marília foi presa no Cais do Sodré, reconhecida pelas manchas azuis que tinha na camisola, aquele em que alguns amigos meus, incluindo a Marília, foram presos. A Marília passou três semanas na temível prisão de Caxias e, não fosse o Inspector da PIDE/DGS Monteiro, nosso conterrâneo, aqui de Paço de Arcos, muito mais tempo teria estado presa. Subitamente, dei por mim a pensar se não estariam os nossos alunos fartos de conhecer estas histórias de um outro mundo, de uma outra época que não é a sua?

Na verdade, o meu pensamento não consegue deixar de estar obsessivamente fixado no 1º de Maio de 2010. Hoje, dia 1 de Maio de 2010, os problemas que se apresentam aos portugueses são incomensuráveis. Na verdade, como português e como cidadão, não posso esquecer que temos mais de dois milhões de trabalhadores precários e mais de seiscentos mil desempregados em Portugal. Quase por todo mundo, há uma forte desregulamentação do trabalho, por imposição do turbocapitalismo, que tende recuar a situação do trabalho, perigosamente, para níveis muito próximos dos finais do século XIX, princípios do século XX. Nesta ideologia turbocapitalista, o trabalho começa a ser visto não como um direito, mas como um dádiva do todo-poderoso mercado. A ditadura dos mercados financeiros e os paraísos fiscais vão eliminando a possibilidade de uma Europa social. A precariedade e a desregulamentação arrastam outro fenómeno - que julgávamos já ultrapassado - o cerceamento dos direitos cívicos. A globalização da mão-de-obra criou um “exército de reserva”, que desvalorizou o trabalho e os fluxos migratórios arrastam consigo outras consequências, tais como: o racismo e a xenofobia. O espectro da China, onde, ironicamente, os direitos dos trabalhadores são nulos, e onde se festeja o 1º de Maio com pompa e circunstância, vai ensombrando todo o mundo ocidental. Enfim, as centrais sindicais prometeram protestos neste 1º de Maio de 2010, em Lisboa, e noutras principais cidades do país. Tendo consciência do conjunto destes problemas sistémicos, é legitimo que pergunte, enquanto cidadão e trabalhador sindicalizado, quais as razões dos protestos e a quem devemos apresentar o nosso veemente protesto. Receio que os responsáveis pelos problemas que vivemos no 1º de Maio de 2010 sejam uma identidade sem rosto.


José António, Prof. de Filosofia da ESQM

1 comentário:

  1. Ou será que o rosto dessa identidade é o nosso, cidadãos demasiado distraídos... ou entretidos...?

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