quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Portugal e a Igreja - a fundação da nacionalidade

É interessante que cada um partilhe daquilo que sabe mais. Como é mais ou menos do conhecimento geral, a minha "especialidade" é a Igreja Católica, instituição que me fascina.
O nosso país, ainda por cima, é extremamente rico do ponto de vista da História, e encontra o seu passado misturado com o passado da Igreja. Não pretendo ser exaustivo: com certeza haverá teses e bibliografia mais que exaustiva sobre o assunto. Mas é sempre curioso fazer uma síntese que, no mínimo, pode conter algumas curiosidades. Esta será a primeira de algumas, que surgirão conforme o tempo e o interesse demonstrado.

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A primeira "ingerência" da Igreja na História do país acontece na própria fundação da nossa nacionalidade.

D. Afonso Henriques assume o Reino de Portugal em 1128, mas só decorridos 15 anos, em 1143, através da assinatura do Tratado de Zamora, é reconhecida a nossa independência por Afonso VII de Leão. Contudo, - e devemos ter em conta o primado espiritual e temporal que o Papa exercia na Idade Média, sendo suserano de todos os Reinos europeus -, no ano de 1142 D. Afonso Henriques oferece o Reino à Igreja, declara-se vassalo do Papa e promete um pagamento, ad aeternum, de um tributo feudal de quatro onças de ouro. O Papa Lúcio II aceita a oferta, declara protecção espiritual ao país e reconhece Portugal como um Reino independente, pressionando assim a assinatura do Tratado de Zamora.



No entanto, é só em 1179 que o Reino de Portugal é oficialmente reconhecido pela Santa Sé, através da bula Manifestis Probatum, assinada pelo Papa Alexandre III. Esta bula, elaborada por um dos papas mais cultos da Idade Média, teólogo e canonista, prevê a resolução de um conflito futuro: o Papa define que «todos os lugares que com o auxílio da graça celeste conquistaste das mãos dos sarracenos e nos quais não podem reivindicar direitos os vizinhos príncipes cristãos».



(nas imagens, de cima para baixo, Lúcio II e Alexandre III)

6 comentários:

  1. O seu post, Diogo, leva-me até à questão da legitimidade ou não da ingerência da Igreja no poder político. A História está cheia de exemplos da interferência de Roma nas questões internas dos estados. No caso português, como muito bem recorda, essa interferência foi desde logo determinante, manifestando-se na aquisição de independência e nacionalidade e, como certamente poderemos confirmar com os seus futuros posts sobre a matéria, continuará a sê-lo ao longo da história desta pequena nação.
    Voltando à minha questão, é legítima esta interferência? Abstraindo-me dos contextos históricos, considero por princípio que a Igreja e o Estado devem ser duas entidades separadas, com papéis distintos. O "Rei dos Judeus", que é o modelo dos cristãos, apesar de abalar o poder romano e o poder local, não tinha aspirações políticas. Separou claramente as águas ao responder: "dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus", quando foi interrogado sobre o pagamento dos impostos. Neste sentido, cabe à Igreja a condução/liderança das "almas" e ao Estado a gestão e governação da coisa pública.
    Mas a Igreja, como força viva da sociedade, pode e deve actuar nela, denunciando as injustiças. minorando o sofrimento dos mais fracos, apoiando os carenciados, promovendo os direitos humanos, proclamando a paz..., enfim não lhe falta campo de acção. Mas não a política! E quando me refiro à Igreja, refiro-me de igual modo à liderança/estruturas de outros credos religiosos. A "confusão" de papéis é nefasta e imprudente, como a História também o confirma.
    O que lhe parece, Diogo?

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  2. Dado o adiantado da noite... esqueci-me de assinar o comentário acima.
    Um bom fim-de-semana para todos,
    Luísa Godinho

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  3. Boa noite
    A questão que a Professora levanta é, claramente, uma das principais sobre este tema.
    Como a Professora diz, a História está cheia de exemplos das interferências da Igreja na vida política. O que pretendo com estes post é, dentro do contexto do nosso país, mostrar de que forma a ingerência da Igreja foi determinante ao traçar o destino de Portugal.

    Nos seus primórdios, a Igreja era clandestina, sobrevivendo às inúmeras perseguições movidas pelo Império Romano. Só com as visões e consequente conversão do imperador Constantino, e através do exemplo da sua devota irmã, Santa Helena, é que o Cristianismo se torna uma religião pública. A partir desse momento, há a legitimação da prática cristã, e quando um chefe de estado como Constantino toma uma decisão de conversão, é óbvio que muito do seu povo seguirá o seu exemplo. Começa, então, a notar-se a politização do culto.

    Claro que, ao longo dos 2000 anos de existência da Igreja Católica, foram talvez incontáveis as vezes em que houve relações mais ou menos lícitas entre esta e os estados. Deverá acontecer? À luz do pluralismo democrático ocidental que hoje vivemos, não. Mas temos de encarar como natural que isso tenha acontecido, porque o próprio poder temporal teve vontade de se submeter ao poder espiritual. A relação de suserania que o Papa teve durante a Idade Média com os reinos cristãos é disso um excelente exemplo: sem exército, sem qualquer outro poder do que a ameaça do inferno, a Igreja submeteu ao seu jugo todos os povos da Europa. Mais tarde, conseguiu ser a melhor desculpa para a civilização das regiões recém-descobertas, e teve aí também as portas abertas pelo próprio estado.

    Parece-me que, por diversas vezes, é a Igreja que acaba por ser usada, dando essa aparência de ingerência. Ao longo dos tempos, assim aconteceu, e muitas vezes com resultados positivos: a Igreja foi o garante da preservação da cultura durante a Idade Média; o Código Canónico é uma das bases do Direito actual; as divisões administrativas foram quase sempre primeiro divisões eclesiásticas; os registos civis começaram por ser registos eclesiásticos.


    Na actualidade, a Igreja deve, exactamente, proceder como a Professora indica: ser uma força viva da sociedade. Mas não nos podemos esquecer que, para além de uma instituição, a Igreja Católica é o corpo de uma religião. Dessa forma, tem como missão, entre outras coisas, guiar os seus fiéis, e ao fazê-lo faz também política, o que não me parece errado.

    Casamento homossexual, aborto, eutanásia, etc, são temas em que a Igreja tem tomado uma posição claramente política, como o deve fazer, pois na sua missão de guiar o rebanho, indica aos fiéis qual é a sua doutrina sobre esses temas. Eles serão livres de a seguir, já não há meios de coacção nesse sentido.

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  4. Isto não se traduz, de qualquer forma, numa confusão de papéis. A independência do Estado face à Igreja e vice versa é, per si, um valor fundamental dos dias de hoje, e do maior interessa da Igreja, que assim se vê livre para actuar a uma escala mais global.

    A Igreja não é, acho importante frisar, uma instituição de caridade. É isso, também, porque a sua doutrina assim o aponta, mas muitos mais. Acima de tudo, em si a Igreja é um estado, e espiritualmente, é o corpo místico de Cristo. As suas determinações morais, compiladas no Catecismo da Igreja Católica, têm reflexo nas suas orientações políticas, primeiro expressas nas encíclicas do Papa Leão XIII, e que actualmente constituem aquilo a que se chama a Doutrina Social da Igreja.

    Mais ainda, um exemplo de como a vida política é condicionada pelo momento religioso, são algumas ideologias, como a democracia-cristã. Prevendo a total separação da Igreja e do Estado, os democratas-cristãos, que neste momento governam alguns dos maiores países da Europa (Alemanha e França), incorporam nas suas políticas a doutrina social da Igreja, não constituindo este facto de maneira nenhuma ingerência desta nos destinos de uma nação.

    Já me alonguei um pouco, acho que temos material para uma boa conversa, que só ganhará com a participação de outros autores do blog e visitantes.

    Bom fim-de-semana,

    Diogo

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  5. Devo esclarecer, caso tenham lido o meu comentário e os do Diogo com alguma distracção, que o que aqui reflectimos é com base em valores actuais que defendem a separação do Estado e da Igreja. Ora estes valores foram evoluindo (se bem que com irregularidade)até às Revoluções liberais e, depois, até ao séc. XX (/XXI) devido ao crescimento das democracias no mundo.
    Não estamos a analisar o fenómeno do poder da Igreja no contexto histórico de cada realidade espaço-temporal, mas sim, à luz da contemporaneidade. É mais um exercício de cidadania...
    Quanto à interessante questão levantada pelo Diogo da democracia-cristão e da doutrina social da Igreja, ficará para posteriores reflexões (... quando não houver testes para corrigir). Ainda acrescentaria a este debate o tema da Teologia da Libertação, experiência religiosa com forte cariz político/marxista.
    Luísa Godinho

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  6. Com certeza todo a discussão que este tema gerou (e espero continue a gerar) são um mero exercício, que nos obriga a questionar e pensar na prática os conteúdos que recebemos da História.
    Ninguém está a fazer a apologia da promiscuidade entre a Igreja e o Estado, nem ninguém é fervoroso ao ponto de vir defender um regalismo ao estilo do nosso Marquês!

    Posso desde já tecer algumas considerações sobre a Teologia da Libertação:
    Esta teologia/espiritualidade surgiu na América Latina, na segunda metade do século XX, inspirada, sobretudo, em más interpretações dos documentos conciliares produzidos no Vaticano II, que embora peçam mais justiça social, não se opõe à doutrina da Igreja sobre o comunismo, exposta pelo Papa Pio XI na encíclica Divini Redemptoris.

    Defendia, essencialmente, uma nova realidade eclesial, em que os cristãos se engajassem politicamente como grupo de cidadãos. Quase uma partidarização da Igreja, transformando-a num partido comunista.

    Claro que a TL foi condenada, especialmente pela Congregação Para a Doutrina da Fé e pelo seu Perfeito, o Cardeal Ratzinger, embora o Papa João Paulo II, próximo dos valores socialistas, tenha pedido a sua revisão para incorporação na Doutrina Social. Na condenação, a Igreja assume o seu compromisso com os pobres, mas classifica estas doutrinas como heterodoxas; isto porque prevêm a politização da fé - ou seja, a identificação da crença com uma posição política. Na minha opinião, é bastante positivo que o Papa Bento XVI tenha peremptoriamente (ao contrário do seu antecessor) marginalizado estas teorias teológicas que poderiam provocar grande convulsão social e, in extremis, criar a identificação da Igreja com um nicho da sociedade, contribuindo para a diminuição da sua influência e para o seu descrédito.

    Nem a democracia-cristã, nem o cristianismo social (dos partidos socialistas de inspiração cristã, como o PPD/PSD) foram alguma vez apoiados oficialmente pela Igreja.

    A posição que a Igreja mantém é a da Sua Doutrina Social, que a ter identificação política, não pode ter identificação partidária nem deve ser assumida por nenhum partido, mas pelos cristãos nos seus actos de cidadania, sempre no espírito do individualismo humanista.

    Mais uma vez me alongo.

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