sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Sugestão de leitura - D. Sebastião e o Vidente, de Deana Barroqueiro


«Este livro que agora deu à estampa é um romance histórico construído e narrado à maneira do século XVI, um dos séculos da sua especialidade. Desta vez, Deana escolheu como objecto central a figura de D. Sebastião cuja vida é narrada em paralelo com a de Miguel Leitão de Andrada, o vidente, quatro meses mais velho que Sebastião e cujas vidas se cruzam em diversas situações ao longo da narrativa.

Sebastião é à partida uma figura sobre a qual se fixam diversas expectativas, o que o torna uma figura política que está sempre no limbo, à beira do precipício. Na verdade é fruto do único filho sobrevivente dos nove que João III teve com Catarina de Áustria. O pai de Sebastião, o infante D. João morre de diabetes mesmo antes do filho nascer. A mãe, D. Joana, filha de Carlos V, não aguenta o isolamento na corte portuguesa e parte para tomar a regência de Castela abandonando o reino e o filho. A solidão de Sebastião transforma-o em joguete nas mãos de diversos validos, como é o caso dos padres e irmãos Câmara — Luís Gonçalves da Câmara e Martim da Gonçalves da Câmara.

A obra foi construída em quatro partes que dizem respeito aos períodos mais importantes da vida do jovem Sebastião.

I—O cavaleiro sem mácula;
II — O cavaleiro da demanda;
III— O cavaleiro da perfídia;
IV— O cavaleiro do desastre.

I— O cavaleiro sem mácula é a história de sebastião até aproximadamente os 12 anos;

II — O cavaleiro da demanda — corresponde à época em que Sebastião já é rei e começa a encarar cada vez com mais entusiasmo o que ainda era o sonho da cruzada em África;

III — O cavaleiro da perfídia — corresponde à altura em que se começam a agigantar em torno dele toda a traição, a espionagem, o aproveitamento da sua juventude;

IV — O cavaleiro do desastre — enquadra toda a preparação de Alcácer Quibir e o entusiasmo do rei versus o receio e o perigo que a jornada comportava, aliada às promessas de apoio de terços e cavaleiros que nunca virão a estar presentes em Alcácer Quibir.

Ao longo destes capítulos desfilam figuras da política europeia e peninsular como Carlos V, Filipe II, Catarina de Áustria, Infanta D. Maria, João III; mas também homens ligados à casa real de Filipe II e Carlos V, tidos como seus espiões e fiéis defensores das suas estratégias políticas, como João de Borja, Padre Francisco de Borja, Cristóvão de Moura. Cronistas como Miguel Leitão de Andrada, João Cascão, Jerónimo Mendonça e o poeta Luís de Camões são simultaneamente personagens e fontes históricas. Esta é de facto uma das mais interessantes estratégias, seguida por Deana. Os cronistas surgem na história integrando na acção da ficção a sua própria escrita.

Miguel de Andrada surge também como um pretexto para que toda a narrativa seja enriquecida com os contrastes entre a cidade e o campo em Portugal no século XVI, diálogo que atravessa toda a obra. Mas esta obra é também atravessada por um riquíssimo contexto internacional onde Espanha e o Império dos Habsburgos dominam a política internacional da Europa daquele tempo. Os palácios, as intrigas palacianas onde os nobres portugueses e espanhóis desfilam com as suas contendas, intriga, espionagens e desavenças são uma constante. O campo, com o seu ritmo lento regulado pela produção da terra, regrado pelo contacto com a natureza atravessa igualmente toda a obra. De forma que na narrativa não são só privilegiados os contextos urbanos mas está também presente o sentir e fervilhar do povo no campo e na cidade.

Enquanto romance escrito à maneira do século XVI, D. Sebastião e o Vidente apresenta, a páginas tantas, a intervenção de um narrador que entra em diálogo com o leitor e interpela-o, avança e recua no tempo, problematiza os assuntos, dá opiniões e conselhos, sugere cautela para as conclusões do leitor. O efeito conseguido é espantoso porque se trata de uma estratégia de aproximação ao leitor, não só porque o interpela e sugere a sua opinião, mas também porque o confronta com situações que coagem a pensamentos e reflexões sobre a época.

Deana sugere-nos ainda uma trama de espionagem que atravessa toda a obra, porque acompanha a vida de Sebastião desde o seu nascimento até à sua morte.

O trabalho de investigação — Deana parte para estes seus trabalhos com um património de cultura já adquirido, porque conhece profundamente a literatura portuguesa toda, e particularmente, por ser mais da sua especialidade, a literatura do século XVI a XVIII.

Enquanto romance histórico, D. Sebastião e o Vidente obedece ao quadro cronológico que visa toda a época desde o seu nascimento em 1554 à sua morte em 1580.

A obra foi precedida de uma intensa e profunda investigação histórica que teve como fontes principais os cronistas já referidos (Miguel Leitão de Andrada; João Cascão, Jerónimo Mendonça) e vários autores anónimos do século XVI e XVII como foi entre outros: Crónica do Xarife Mulei Mahamet e d'El-rei D. Sebastião; Jornada de El-rei D. Sebastião à África e crónica de D. Henrique; Notícias recônditas do modo de proceder da Inquisição com os seus presos. Documentou-se ainda com leituras de clássicos como Miguel de Cervantes, D. Quixote de la Mancha.

Recorreu também a um conjunto vasto de obras historiográficas de historiadores como Borges Coelho, José Mattoso, Francisco Bethencourt, Sales Loureiro, António José Saraiva, entre outros, de forma a poder dominar os problemas sociais, económicos e políticos e religiosos da época. Mas vai mais longe. Deana documenta-se também sobre os hábitos do povo, do clero e da nobreza: a forma como vestem, como comem, o que bebem, como se relacionam, a música, a poesia, a par com o conhecimento profundo sobre o funcionamento do tribunal da inquisição. Para além do mais, Deana estudou também os contextos internacionais que giram em torno das figuras de Carlos V e de Filipe II.

D. Sebastião e o Vidente é um romance histórico que decorre num período complexo e particularmente movimentado da história europeia. A Espanha em pleno apogeu, exerce o poder político em grande parte da Europa, tem estabelecidas ligações entre as diversas casas reais europeias através de uma estratégia de casamento das princesas e príncipes castelhanos. A Espanha é nesta altura uma grande potência europeia com um império continental e ultramarino. Portugal situava-se já numa fase de declínio do seu império ultramarino e passa por uma enorme crise política que culmina com a morte de Sebastião em Alcácer Quibir e com a perda da independência.

A obra obedece a uma alternância de cenário que muda, sensivelmente de quatro em quatro páginas. É uma estratégia discursiva que imprime um enorme ritmo à narrativa e prende o leitor à história. Mas o leitor é também presenteado com a acção das personagens, com acontecimentos inesperados e sobretudo com muita intriga, muita espionagem e bastante traição. Há uma constante tensão, não só entre as personagens que desfilam no livro, mas uma tensão também impressa no perfil psicológico de Sebastião, magnificamente traçado: as suas inseguranças, os seus medos, o seu desejo de partir à desfilada da aventura e a sua necessidade de peregrinação constante pelo país, o que o fazia estar pouco tempo no mesmo sítio. Portugal do século XVI conhece-se também através das constantes viagens de Sebastião.
Este é também um romance cheio de imagens, de paisagens, de retratos humanos e de dramas e de angústias, onde o ser humano se apresenta no seu melhor e no seu pior.

Trata-se pois de uma obra que, pelo ritmo, pela dinâmica, pela riqueza dos intervenientes, pela diversidade das paisagens e dos rostos humanos bem podia ser adaptado ao cinema.

Quero, por isso, felicitar vivamente Deana Barroqueiro pelo excelente romance que mais uma vez nos apresenta e, simultaneamente, felicitar a Porto Editora pela obra de excelência que escolheu para inaugurar uma colecção de ficção que agora apresenta ao público.»


Ana Cabrera - Historiadora

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Na sequência dos interessantes posts do Prof. José António sobre D. Sebastião, apresento-vos, nas palavras de uma historiadora, um romance genial que li já há dois anos. Trata-se de uma obra (prima?) de uma escritora luso-americana, extremamente culta, que tive o prazer de conhecer na feira do livro do Porto em 2007.

Espicaça-vos a curiosidade? A mim também espicaçou. Mas fica aqui um aviso: a escrita de Deana Barroqueiro é tão intrincada que pode levar o leitor a desistir após umas frases. Vale a pena, garanto, ser persistente até ao fim.

3 comentários:

  1. No nosso blog...cada vez mais surpresas!Nesta última visita dou comigo a pensar: mas, também já a minha amiga Ana Cabrera escreve aqui? Dou-me conta que foi o Diogo que teve a belissima ideia de divulgar o livro de Deana Barroqueiro em cuja apresentação estive no maravilhoso cenário proporcionado pelos claustros do Mosteiro dos Jerónimos. Muito obrigada ao Diogo, porque entretanto tinha-me esquecido de ler o livro!
    Pode ser que depois possamos trocar aqui algumas opiniões
    Isabel Isidoro

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  2. Este livro vale mesmo a pena ser lido, porque consegue introduzir-nos na época como poucos o fazem. Não é uma lista de factos históricos, soltos, mas um verdadeiro romance, novelesco, quixotesco, em ebulição constante, irreverente como D. Sebastião, sensual ao jeito da sensualidade que a Inquisição perseguia. Delicioso, diria o Eça!

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  3. Caríssimos amigos Isabel e Diogo
    Acabo de ver este post(há muito que não fazia uma pesquisa sobre o meu D. Sebastião e o Vidente) e a vossa troca de comentários que me deixaram perfeitamente nas nuvens! Obrigada pelas vossa palavras e elogios. Surpreende-me de facto, que não sendo eu uma habituée dos media ou pertença de gruposde escritores ou outros, este meu livro tenha vendido mais no seu 3º ano de existência do que nos dois primeiros, ultrapassando já os dezasseis mil exemplares.
    Bem hajam.

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